À boleia da reedição da caixa dos Kraftwerk com DVD, o jornalista Orlando Leite faz uma viagem pelo percurso do colectivo que mudou para sempre a história da música contemporânea.

Texto: Orlando Leite

Memórias de uma auto-estrada

O meu primeiro vinil dos Kraftwerk foi o “Die Man Machine” e risquei-o no meu pickup da Philips com colunas integradas devido a tanta repetição. A minha última compra foi uma magnífica caixa com DVD, CD e um fabuloso libreto imagético que oiço e vejo na consola multimédia. Durante este intervalo, cresci, tornei-me audiófilo, cinéfilo, crítico e homem. Devido a eles, existe um género musical riquíssimo de aventuras sonoras com experiências tonais e rítmicas cujos intérpretes são globais e já imortais. Com eles, as pistas de dança tiveram cor e alegria e, por causa deles, muitos jovens iniciam-se diariamente nas lides autorais. O conceito de homem/máquina foi uma presença constante no espírito criativo do grupo e a simplicidade das letras só tem paralelo na sua objectividade. Críticos exímios de um mundo cada vez mais industrial e agonizante, são carinhosamente apelidados de “avôs” e cuidadosamente seleccionados como precursores em qualquer enciclopédia musical. Os Kraftwerk são isto: um ritmo, uma cor, uma malha, uma palavra, uma bicicleta, um estúdio rolante, um robot, um mundo. Ousaram a diferença que ainda é salutar e bem actual num mundo cada vez mais orwelliano. A imortalidade diz-se kling-klang.

A História

Aproveitando a forte tradição no campo científico e herdando o inconformismo estético de compositores como Karlheinz Stockhausen, bandas como os Kraftwerk, Tangerine Dream, Triumvirat e Can, instigadas pela efervescência da contracultura, criaram uma nova vertente musical baptizada com o nome de Krautrock – termo criado por John Peel depois de escutar o álbum “Psychedelic Underground” dos Amon Düül.

Os Kraftwerk formaram-se inicialmente (1969) sob o nome de Organisation. Pioneiros do electro/rock, caracterizaram-se desde os primeiros tempos por fundirem a música popular com a música electrónica de vanguarda, tendo como fonte de grande inspiração Stockhausen. Num mundo que ainda saía da revolução das flores dos anos 60 e com músicos exuberantes de cabelo comprido, os Kraftwerk surgiam numa imagem retro, de fato e gravata, cabelo curto e postura anti-pop. Não usavam guitarras eléctricas, numa altura em que a guitarra eléctrica era sinónimo de música pop, mas introduziam instrumentos electrónicos nessa linguagem comum.

Através de repetições reconfortantes e de motivos melódicos minimalistas, o quarteto de Dusseldorf evoca a música mais como uma forma de arte fluente do que uma arte lógica. No plano do conteúdo e das letras das suas canções, os Kraftwerk celebram o homem contemporâneo que transita e é atravessado pelo mundo, como uma bio-unidade em nomadismo e, com humor trespassado de fina ironia, glorificam a velocidade da vida moderna numa espécie de ode à revolução no campo das comunicações, no mundo continuamente transformado pelos hábitos tecnológicos.

Dos Organisation, o único traço que ficaria na carreira da dupla Ralf Hutter e Florian Schneider, era a necessidade de transgredir as regras do pop/rock. Como Kraftwerk, passavam a adicionar a música electrónica e a tentar organizar, de forma sintética, o caos. A influência da música pop nos Kraftwerk do começo é crucial para entendermos como eles chegaram à raiz de seu som. Contando com mais dois instrumentistas – o guitarrista Michael Rother e o baterista Klaus Dinger – que mais tarde deixariam a banda para formar os também lendários Neu!-, gravaram “Kraftwerk 1” e “Kraftwerk 2” no começo dos anos 70. Com a saída de Rother e Dinger, os dois gravam um terceiro disco, “Ralf und Florian”. Apesar de não serem álbuns marcantes da discografia dos Kraftwerk, estes três discos são cruciais para o entendimento do groove hipnótico que a banda desenvolveu a partir de sons artificiais e marcam o inicio da construção do estúdio da banda, o mítico KlingKlang.

Em 1974, coincidindo com a entrada dos percussionistas Klaus Roeder e Wolfgang Flür -, gravam o lendário “Autobahn”, álbum em que se reinventaram como compositores, entregando-se totalmente à electrónica sintetizando-a em laboratório, com teclados Moog e Farfisa, vocoder, LFOs, baterias electrónicas e sequenciadores caseiros (construídos pela banda) e a uma mudança radical de imagem, elaborada por Emil Schult, que também passaria a dedicar-se à criação das capas dos discos, dos concertos, além de escrever letras, o que lhe valeu o título de quinto Kraftwerk.

A importância dos Kraftwerk na música do século XX só tem paralelo nos Beatles, ao ponto de se dizer que a música pop tem que ser definida como ak/dk (antes dos Kraftwerk, depois dos Kraftwerk). A sua influência na história da música pop é visível nos movimentos new romantic britânico (Duran Duran, Human League, Visage), electropop (New Order, Depeche Mode, Ultravox, Gary Numan), industrial (Nine Inch Nails), new wave (Fall, B-52’s, Devo), na fase Berlim de Iggy Pop e David Bowie, no Disco (Giorgio Moroder, Donna Summer), electrofunk (Afrika Bambaataa, Trouble Funk), no techno de Detroit (Mantronix, Cybotron) e na house.

Não será exagero dizer que os Kraftwerk fizeram para a música o mesmo que Andy Warhol fez para a arte pop, abrindo todo um novo leque de opções, experimentando as novas tecnologias e produzindo um novo olhar sobre a arte, fazendo com que a música electrónica se tornasse algo mais acessível ao público sem perder a sua verdadeira essência e abrindo o caminho para as futuras gerações.

“12345678: The Catalogue”

AUTOBAHN (1974)


“Autobahn” é reconhecido como o mais representativo disco dos Kraftwerk, revelando de forma clara e sintética as raízes da música electrónica. Caldeirão de experimentações sonoras, marcou profundamente a música pop nos anos seguintes. Nele encontramos um misto dos elementos já usados, até então, no Krautrock, mas nunca antes visto ou ouvido, como por exemplo: um sintetizador Moog executando toda a sessão de baixo; o livre uso de phasing (repetição de uma determinada melodia); um vocoder e percussão electrónica. O resultado é uma imensa peça musical, como comprova o original tema título de longa duração minimalista (cerca de 22min), em que a base inicial é substituída por outra, mas sempre agregada à primeira ideia melódica, criando com isso células independentes mas unidas num conceito único de som. Uma grande viagem dentro de um cometa melódico que percorre portais espaciais e onde climas existencialistas e ficcionistas dão o tom e realizam intervenções apocalípticas e diferentes.

RADIO-ACTIVITY (1975)


Radio-Activity tem uma estética sonora electrónica extremamente autêntica, propondo um som que parece de facto vir das entranhas das monstruosas centrais nucleares. Seguindo a proposta constante da banda, sempre ligada às temáticas futuristas em diálogo com a caótica realidade de um mundo cada vez mais tecnocrático, o disco parece estar realmente infectado de pura radioactividade, seja com os sintéticos coros gregorianos em “Radio Stars” ou nos melancólicos processos mecânicos de “Ohm Sweet Ohm”. Registo indispensável para os amantes da música electrónica e experimentalismos sonoros, com vozes processadas em inglês e alemão.

TRANS EUROPE EXPRESS (1977)


Para muitos considerado a obra-prima dos Kraftwerk, “Trans Europe Express” celebra o passado romântico da Europa e o seu futuro resplandecente que brilha de elegância e decadência, viagens e tecnologia. “Trans Europe Express” destaca-se como um ponto médio perfeito entre dois extremos muito importantes de uma obra dinâmica, cujo marco inicial é o experimentalismo orquestral sinfónico de “Autobahn” e as atmosferas pop mais óbvias de “Computer World”. Marcadamente classicista nas suas harmonias, surpreende pela métrica e ritmo de algumas canções como por exemplo “Showroom Dummies” e “Metal On Metal”, esta indirectamente ligada ao nascimento do electrofunk quando cinco anos mais tarde a sua linha melódica foi utilizada em “Planet Rock”, dos Afrika Bambaata, o berço de nascimento do electrofunk. Outro grande tema de destaque neste álbum é “Franz Schubert”, com excelentes arpejos de piano, perfeita homenagem ao homónimo compositor austríaco.

THE MAN MACHINE (1978)


De uma certa forma, pode-se dizer que “The Man Machine” é o segundo volume da trilogia evolutiva do quarteto alemão, iniciada com “Trans Europe Express” e finalizada em “Computer World”. Se no seu antecessor ainda soavam como homens normais, exibindo emoções puramente humanas e no sucessor mostraria os membros da banda funcionando à base de microchips – deixando, todavia, claro que mesmo as máquinas têm sentimentos, “The Man Machine” revela o momento da sua transformação, enquanto ainda eram seres meio homem meio máquina. A frieza das cidades no seu desenvolvimento desenfreado, das máquinas sem sentimentos próprios, a opressão e a falta de sensibilidade são os temas do álbum. As semelhanças com o filme “Metropolis” de Fritz Lang são visíveis. A tecnologia, a arquitectura, a valorização da cultura e a importância do sentimento humano, peças fundamentais do filme, são também temas recorrentes neste trabalho dos Kraftwerk. Outro factor destacável em “The Man Machine” é o seu som surpreendentemente actual. Por mais datados que os sintetizadores de 1978 possam soar, é fácil perceber como eles deram origem a toda a geração synthpop/new romantic dos anos seguintes, a toda a cena techno dos anos 90 e à actual música pop/electrónica (Cut Copy, Air, etc).

COMPUTER WORLD (1981)


No apogeu do seu poder criativo, os Kraftwerk davam as boas vindas aos computadores, ao mesmo tempo que lamentavam as inevitáveis perdas de privacidade que a era digital traria consigo. Utilizando-se da linguagem da música pop, o disco indica a importância e a iminência da formação de uma sociedade da informação, na qual altera-se a estrutura de poder analógico ligada ao binómio indústria/comércio, para a posse e manipulação digital de dados informacionais. A banda praticamente definiu a cibercultura, com o estabelecimento de uma nova concepção de arte, calcada na impessoalidade da fonte emissora e no enaltecimento da mensagem. Neste álbum, faixas como “Numbers” e “Pocket Calculator” com os seus cadenciados “beats”, viriam a ser fonte de inspiração para a nova geração de artistas da house de Chicago e do tecno de Detroit.

TECHNO POP (1986)


Após cinco anos de silêncio, a banda voltaria à edição discográfica com “Techno Pop”, originalmente editado com o nome de “Electric Café”, sob um contexto completamente novo: a tecnologia como líder e responsável pela integração das comunidades e línguas. Uma viragem muito acentuada na arquitectura musical do quarteto alemão mas que não viria a defraudar as expectativas. Pelo contrário, a agora tão propagada aldeia global dava-se a conhecer por sintetizadores robóticos em canções de forte componente rock, “From Boing Boom Tschack” ou no funk electrónico de “Musique Non Stop”, naquela que seria a primeira incursão da banda na era da tecnologia digital.

THE MIX (1991)


Primeiro álbum totalmente gravado em sistema digital, “The Mix” é uma espécie de visita ao passado com a revisão de algumas das músicas mais marcantes da banda a soarem a música de dança que não o é. Para os Kraftwerk, a tecnologia, o futurismo, máquinas e vida moderna foram sempre a sua temática, portanto não era de estranhar a nova roupagem de canções como “The Robots”, “Trans Europe Express” ou “Home Computer” em linhas de funky, aproximando-as descaradamente da cultura emergente dos “club’s”

TOUR DE FRANCE (2003)


Ralf Hutter e Florian Schneider são dois fervorosos adeptos e praticantes de ciclismo, por isso não foi grande surpresa a edição de “Tour de France” no ano em que a tradicional prova comemorava o seu centenário. Nele escutam-se seis músicas distribuídas em doze faixas. A primeira apresenta-se em cinco faixas chamadas de “Prologue”, “Tour de France etape 1”, “Tour de France etape 2”, “Tour de France etape 3” e “Chrono”. Pode-se considerar a composição chave para o disco, porque mostra como os Kraftwerk se servem de referência para si mesmo, aplicando e redefinindo conceitos que eles próprios criaram. Uma musicalidade directamente extraída do computador, numa linguagem própria em que o timing, o silêncio e a composição são privilegiados. As letras, como sempre minimalistas, são uma porção de compostos químicos que circulam no organismo do atleta durante a corrida. Um álbum de construções suaves e melodiosas que conclui, por agora, o caminho sempre certo, ritmado e moderno desde os primeiros passos de uma banda que definiu aquilo a que podemos chamar música electrónica.

Texto: Orlando Leite

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