Pela manhã de quarta-feira, a Punch foi amavelmente recebida na Igreja Evangélica Baptista de Benfica, a segunda casa de Tiago de Oliveira Cavaco (ou melhor, Tiago Lacrau). Tivemos uma acesa conversa de mais ou menos uma hora que foi desde os tempos dos Metanóia em Queluz até ao lançamento de Os Lacraus enfrentam o lobo (que ainda há poucos dias invadiu o hall do S. Jorge), acabando por rever toda a história daquela que poderia ser designada como a primeira editora DIY em Portugal, a Flor Caveira.
Como é que Os Lacraus participam no nascimento da Flor Caveira?
Tiago Lacrau – Houve um rapaz, o Luís Guerra da Blitz, com quem falei há pouco tempo, que captou bem o espírito da coisa e até perguntava até que ponto Os Lacraus são um portal de acesso a uma juventude inacabada e eu nunca tinha pensado nisto. Num certo sentido, Os Lacraus são um regresso não consciente àquilo que começou em 1993, quando começámos a fazer bandas sem um grande sentido de apuro estético. Depois, no final dos anos 90, esta fase termina com o final duma banda que tivemos que se começou por chamar Metanóia, depois Catacumba, depois Bible Tunes e, finalmente, A Instituição, nome com o qual acaba. Num certo sentido, a editora surge dentro de um determinado espírito de derrota, mas também no espírito de não querermos assumir o facto de a banda “não ter pegado” e decidirmos criar uma editora e nela fazermos o que nos apetece. Claro que nenhum de nós estava à espera que, depois, à custa duma segunda geração, a d´Os Pontos Negros, as pessoas despertassem para a Flor Caveira e para aquilo que estávamos a fazer numa escala muito pequena. Por exemplo, só a partir de 2008, é que os discos começam a esgotar.
De que maneira a vossa origem religiosa protestante (especificamente baptista) contribui para a proactividade patente na Flor Caveira e para a vossa independência criativa ao criar música, sem grandes recursos de início?
Tiago Lacrau – Há um encontro entre a nossa fé como crentes que cresceram em igrejas protestantes e isso dá-nos uma inclinação para a autonomia por não estar à espera de uma certa aprovação das pessoa em relação ao que fazes; se sentes que Deus te dá talentos/recursos, tens de os usar e isso é, eu diria, uma marca cultural do protestantismo. Por outro lado, como somos adolescentes, em Queluz, no início de 90, havendo nessa altura um reavivamento do punk, algo que nos animou, tendo o punk esse lado DIY. Ao fazer uma junção (inconsciente, para nós, na altura com quinze anos) dos dois factores, começámos a fazer gravações num registo artesanal. Além de que uma das razões para haver tão pouca música independente em Portugal advém do facto de as bandas, por muito minúsculas que fossem, terem tido sempre delírios de grandeza e recusarem-se a gravar, sonhando com um grande estúdio e adiando esse momento para quando fossem grandes estrelas. O que é interessante com as gravações é o facto de te permitir olhar para trás (mesmo havendo coisas que te façam rir nas primeiras gravações) e ver que já foi feito um caminho e que, ao fazer este caminho, é criado um modelo de integridade e disciplina pessoal ao qual vais corresponder. É irónico que tivemos sempre entalados entre o pessoal para quem mandávamos maquetes, que como que se assustavam pela temática mais ou menos religiosa e as pessoas da nossa paróquia que nos consideravam um bocadinho desviantes. Deste modo, isto foi bom porque o nosso próprio espaço foi algo ao qual não conseguimos evitar e nos foi obrigado a estabelecer.
Como é que se sentem com o emergir da Cafetra Records, que tem várias coisas em comum com a Flor Caveira dos anos 90?
Tiago Lacrau – Ficamos sempre contentes, quando há alguém que faz coisas das quais gostamos e é o caso, há algumas coisas da Cafetra que eu gosto bastante. Há duas semelhanças connosco, o facto de serem um grupo pequeno que se desdobra em várias bandas e, ao mesmo tempo, o facto de fazerem música barulhenta e não ter problemas com o barulho. Aprecio esse espírito de autonomia e independência e acho bem o facto de se criarem cenas, é divertido as pessoas teorizarem muito e questionarem até que ponto que cena é que há e que cena é que não há. É óptimo o que o pessoal da Cafetra está a fazer, porque têm o hype a favor deles, mas têm discos e tenho visto os vídeos deles e vejo que se estão a divertir. Isso também é importante e que, com esse entusiasmo, criem uma medida de integridade ao qual correspondam.
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De onde vem o uso recorrente de animais na tua lírica (quer em Tiago Guillul, quer em Os Lacraus) e com que intenção é feito?
Tiago Lacrau – Há aqui alguns clichés do rock que nós não recusámos, como teres nomes de bandas que são bichos (The Beatles – escaravelhos; Scorpions – escorpiões). Por outro lado, desde que os meus filhos começaram a nascer, eu apercebi-me de que, na música infantil, os animais ocupam um lugar muito importante e, para mim, que tento cada vez simplificar cada vez mais a minha música, porque hoje não me fascina ter uma letra que dê um ar de “ah, isto é tão profundo!”. Vou ser-te sincero! Quando oiço algumas pessoas a escrever num registo demasiado denso, acho que se trata de uma máscara de superficialidade e sinto até que os autores que mais gosto de ler não tentam simular densidade. Além disso, quando falo em animais, relaciono-me também com a Bíblia, que está cheia de fauna e de criação. Provavelmente, isso transparece, de alguma forma, na minha música sem eu estar muito alerta disso…aliás, tu detectaste isso melhor que eu. Isto é também uma das coisas que tem mais piada, que é quando fazes coisas, o facto de as pessoas, ouvirem, lerem e interpretarem algo sobre ti que nunca tinhas considerado.
No vosso MySpace, há um tema chamado “Canção para a Margarida Marinho” e, agora, no novo álbum, sai também uma “Canção para a Alexandra Lencastre”. Há alguma insistência temática em actrizes participantes em novelas televisivas?
Tiago Lacrau – (Risos) Não, a “Margarida Marinho” foi gravada antes quando, em Lisboa, estavam afixados, por todo o lado, cartazes das “Confissões das Mulheres de 30”, um teatro onde ela entrou e foi inevitável não compor esta canção. Já em “Canção para Alexandra Lencastre”, passamos uma mensagem de preocupação pela própria actriz e um apelo à sua preservação como figura social sempre tão exposta.
Os Lacraus encaram o lobo é o nome do disco que saiu este ano, mas, na capa, puseram a Flannery O Connor a servir-vos bebidas. Qual é a relação entre a escritora e o álbum?
Tiago Lacrau – Nós não tínhamos a ideia de gravar um disco que parecesse conceptual, mas se houver alguma justiça por ter sido colocada a O Connor na capa foi porque o primeiro tema do disco foi a canção para Flannery O Connor. Como estava a ler uns ensaios dela, fiquei muito inspirado e escrevi sobre ela. Quando o disco estava gravado, pensámos num título e numa capa. Tínhamos, então, um bom amigo e grande desenhador, o André Trindade, que nos desenhou a capa e pensámos até certo ponto se não era boa ideia desenharmos a Flanny O Connor a servir-nos connosco à mesa, já que algumas partes da canção falam da vida dela, pois foi alguém que, durante muitos anos, lutou contra a doença do lúpus (cuja palavra de origem latina significa lobo). De certa forma, o conceito de enfrentar o lobo, ainda por cima por parte de alguém que viveu tão debilitada, foi um grande encorajamento e exemplo de resistência e motivação para nós. Apesar de não conceptual, esta escritora é uma das personagens que o habita. Acredito que as pessoas mais fortes são as que mais servem (claro que ouves isto de uma pessoa de fé). O serviço não é um sinal de fraqueza, mas sim de força.
O que é que um leitor da Punch pode esperar do disco e dos próximos concertos d’Os Lacraus?
Tiago Lacrau – Eu encontro uma característica que espero que tenha a ver com os dois. O disco está simples, com sonoridade rock muito elementar, sem pretensões. Agora, é um trabalho, onde nós nos tentamos pôr às cavalitas das nossas referências preferidas, como The Clash e Bruce Springsteen (ambos figuram na capa, se repararem). Por outro lado, pretendemos transbordar este tipo de simplicidade e excesso para o concerto; fazer algo não de grandes palcos, mas, do género, tu estares num tapete a tocar e as pessoas à tua volta, deixando que as músicas estejam a fazer as coisas por si próprias e não tanto estar dependente de um conceito. No fundo, manter as coisas simples e sem grandes sofisticações…é bom que tu tentes fazer valer os discos não daquilo que tu queres que eles sejam, mas daquilo que eles de facto já são.
ENTREVISTA: Rodrigo Soromenho Marques
FOTOGRAFIAS INSERIDAS NO ARTIGO: Ana Quintino
