O final de tarde soalheiro desta segunda-feira, 23 de Abril, condizia com o estado de espírito das milhares de pessoas que se deslocaram ao Campo Pequeno. Após muitos meses de antecipação com os bilhetes guardados no melhor cofre lá de casa, ou numa euforia contida de quem guarda o melhor segredo, para os sortudos que conseguiram os últimos lugares da sala apenas na véspera, difícil era não contar os minutos para (re)ver os nossos canadianos preferidos. A ocasião era solene: os Arcade Fire deslocavam-se ao nosso país pela primeira vez em nome próprio, no âmbito da “Infinite Content” tour. O mote era a apresentação do (controverso) quinto disco de originais, Everything Now, num palco localizado no centro da arena, proporcionando uma peculiar experiência 360º aos fãs.

A primeira parte do espectáculo, pelas 20h, estava reservada para os Preservation Hall Jazz Band, experiente banda de New Orleans, com mais de 50 anos de história e entusiasmo. A vivacidade e a competência dos músicos em palco fizeram-nos esquecer que estávamos na cidade mais hipster da europa e transportaram-nos, com as raízes afro-cubanas da banda, directamente para o sagrado Preservation Hall. Ironia da vida, dificilmente nos lembraríamos de sugerir esta banda para a abertura de concerto dos Arcade Fire, mas sentimo-nos uns verdadeiros privilegiados por alguém ter tido a ousadia de o fazer.

O cenário estava montado: ao centro um ringue de boxe e, acima deste, ecrãs gigantes passavam variadíssimos anúncios da controversa EN (Everything Now) corporation.  Pouco passava das 21h quando o voz-off anunciou com pompa e circunstância a chegada dos Arcade Fire que, percorrendo um corredor de seguranças, foram calorosamente aclamados pela plateia até ao palco. Todos eles fizeram questão de encarnar, por momentos, lutadores de boxe, e não se pouparam a saltos eufóricos. A “Everything Now” impôs o tom inicial da festa, no ringue iluminado de branco. Nos ecrãs lia-se “TUDO AGORA”, para o caso de alguém ainda não ter percebido o mote, mas mesmo a multidão das bancadas já estava toda de pé a entoar a primeira música.

Numa noite em que os Arcade Fire nos brindaram com um alinhamento que deu espaço a todos os álbuns da banda, fomos agradavelmente surpreendidos pela quantidade de músicas escolhidas do primogénito, Funeral. O palco 360 proporcionava realmente uma experiência diferente, na qual todos os elementos da banda tinham um papel muito activo. Não fosse a rotação central, do piano e da bateria, não ser suficiente, os restantes membros trocavam consecutivamente de lugar, o que permitia a todo o público observar, à vez, a energia contagiante de cada um deles.

O ritmo ao longo de todo o concerto foi alucinante, com paragens mínimas entre músicas. Ainda assim, houve também espaço para momentos mais calmos. Exemplo disso mesmo foi o facto de o ringue se ter despido das cordas que delimitavam o seu perímetro, de vez, para Régine Chassagne cantar “Haïti”. Sob a teatrealidade que lhe reconhecemos, a vocalista moveu-nos com o seu tom de prece, em que mistura com naturalidade francês e inglês.

Win Butler disse finalmente boa noite antes da “No Cars Go”, num dos raros momentos em que o ouvimos simplesmente falar. O momento que se seguiu relembrou-nos o concerto da banda no Cabeço da Flauta (SBSR 2011), num coro entusiasta que queria prolongar o hino por mais minutos do que a música permitia. Win fechou os olhos, apontou o microfone para a plateia, e deixou o momento acontecer.

Uma das características mais apaixonantes dos Arcade Fire é a generosidade que demonstram. Numa banda com elementos tão fortes como Win ou Régine, não são apenas estes dois que brilham. Foram bons os momentos em que Régine apareceu num camarote ou em que Win se deixou abraçar por meia plateia, mas apreciamos também o espaço que existe para os restantes membros trocarem de instrumentos, emprestarem vozes maiores nas músicas e espelharem a felicidade de quem faz aquilo de que mais gosta. O público do Campo Pequeno retribuiu a generosidade ao longo de todo o concerto, cantando, agitando corpos e, acreditamos, também comovendo a banda.

“Put your money on me” começou com um longo instrumental. Nos ecrãs gigantes passavam os anúncios da EN corporation. Como se de um programa da tarde portuguesa se tratasse, o valor monetário da banda subia ao longo da música, enquanto Sarah Neufeld, a violinista, nos deleitava com a sua voz nos coros. Reconhecemos que fizemos as pazes com a vibe ABBA do mais recente álbum, definitivamente, algures no meio desta música.

Achámos curioso como as músicas de Funeral, “Neighborhood #4 (7 Kettles)”, “Neighborhood #2 (Laika)” e “Neighborhood #1 (Tunnels)”, abriram caminho para The Suburbs, do qual destacamos a apoteótica “Ready To Start” (em que o público quer sempre lançar o título da música antes de tempo, tal é a antecipação que esta proporciona) e “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”. Nesta última, ganharam destaque as bolas de espelhos penduradas no tecto, que espalhavam estrelas por todo o tecto da sala, fazendo-nos reflectir sobre a prece de Régine – I need the darkness, someone please cut the lights.

Ainda não tínhamos recuperado de “Afterlife” quando os ecrãs começaram a mostrar uma sala a arder, sob as palavras “Everything not now”. O fumo espalhou-se por toda a arena para um dos momentos mais inspirados do último álbum, “Creature Comfort”. A partir daqui o tempo começou a fugir-nos das mãos. A banda saiu mas regressou rapidamente com o título “We Don’t Deserve Love” nos ecrãs, e nós tememos que eles ainda não tivessem percebido que, sim, mereciam o nosso amor.

Os Preservation Hall Jazz Band regressaram a palco para as duas últimas músicas da noite, dando um gostinho muito especial a “Everything Now (Continued)” e “Wake Up”.  O último hino foi cantado praticamente em uníssono pela plateia que, na sua maioria, gesticulava perante frases como If the children don’t grow up, our bodies get bigger but our hearts get torn up – uma mensagem que já sentimos como nossa. Os Arcade Fire abandonaram a arena acompanhados pelos Preservation Hall Jazz Band, como se de uma banda só se tratassem. Num percurso que mais parecia uma parade em New Orleans, sentimos que não éramos os únicos com dificuldades em aceitar que o concerto tinha chegado ao fim.

Esta noite vai ficar na memória de todos os que estiveram presentes no Campo Pequeno. Não estamos interessados em comparar este com outros concertos dos Arcade Fire, porque já os conhecemos há tempo suficiente para sabermos que continuaremos a ter arrufos de namorados, com uma música ou até um álbum, mas esta relação é para durar. Já fazíamos tudo outra vez – tudo, agora. I guess we’ll just have to adjust.

Alinhamento:

01. “Everything Now” (Everything Now, 2017)
02. “Rebellion (Lies)” (Funeral, 2004)
03. “Here Comes the Night Time” (Reflektor, 2013)
04. “Haïti” (Funeral, 2004)
05. “No Cars Go” (Neon Bible, 2007)
06. “Electric Blue” (Everything Now, 2017)
07. “Put Your Money on Me” (Everything Now, 2017)
08. “It’s Never Over (Oh Orpheus)” (Reflektor, 2013)
09. “Neighborhood #4 (7 Kettles)” (Funeral, 2004)
10. “Neighborhood #2 (Laika)” (Funeral, 2004)
11. “Neighborhood #1 (Tunnels)” (Funeral, 2004)
12. “The Suburbs” (The Suburbs, 2010)
13. “The Suburbs (Continued)” (The Suburbs, 2010)
14. “Ready to Start” (The Suburbs, 2010)
15. “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)” (The Suburbs, 2010)
16. “Reflektor” (Reflektor, 2013)
17. “Afterlife” (Reflektor, 2013)
18. “Creature Comfort” (Everything Now, 2017)
19. “Neighborhood #3 (Power Out)” (Funeral, 2004)
(Encore)
20. “We Don’t Deserve Love”
21. “Everything Now (Continued)”  (Everything Now, 2017) – com os Preservation Hall Jazz Band
22. “Wake Up”  (Funeral, 2004)  – com os Preservation Hall Jazz Band

Texto: Andreia Duarte
Fotografia: João Pedro Padinha (Sony Music Portugal)