A edição de 2021 do Festival Iminente regressou ao seu formato normal. As artes e a música são dois mundos que juntaram-se em comunhão com a cultura urbana. A Matinha foi o local escolhido, num edifício abandonado entre Marvila e o Parque das Nações, este espaço em Lisboa é terra de ninguém, numa cidade que continua a crescer e a conhecer novos territórios. O recinto mais amplo beneficiou a circulação e o distanciamento e fazia lembrar um cenário do Mad Max, mas sempre em linha com o espírito promovido pelo seu grande responsável, o artista Vhils. Estamos num país periférico, ouvindo músicas em diferentes línguas e numa capital europeia que vai descodificando o seu ADN. Aqui reside a essência deste certame.

Todos os dias começaram com uma talk para debater a cidade e os seus problemas. Em tempos pós-pandémicos surgiram novas condicionantes que vieram alterar o dia-a-dia das pessoas. Falou-se de descarbonizarão, de desigualdades, de territórios e de afectos. Tudo questões que impactam os cidadãos da urbe, os jovens e as diferentes classes. Tal como nas edições anteriores podemos ver intervenções artísticas por todo o recinto. Pedro Podre, Mariana Miserável, Raquel Belli e o resultados dos workshops feitos em alguns bairros na zona metropolitana de Lisboa são apenas alguns exemplos.

O primeiro dia abriu com a espanhola de ascendência marroquina Ikram Bouloum, as sonoridades magrebinas fizeram-se sentir logo nos primeiros acordes. Uma voz potente que se fez ouvir em todo o Palco Gasómetro, ainda sem muito público, mas com alguns curiosos. Seguiram-se Llama Virgem e Victor Torpedo and The Pop Kids, no Palco Choque e no Palco Cine Estúdio respectivamente. Dois desconformados com mensagens fortes. Os Llama Virgem mais focados numa crítica social e com um tom sarcástico. O Victor Torpedo com um rock and roll mais old school, mas muito genuíno.

O concerto mais vibrante deste primeiro dia pertenceu a Pongo. Num palco principal já cheio e a viver-se uma atmosfera pré-pandémica houve dança, sensualidade e muita vontade de transgredir. A música da artista angolana é provocadora e um estímulo para quem quer libertar-se. No palco dançava-se de forma frenética, mas Pongo decidiu desafiar o seu público. Desceu até à plateia e organizou ali mesmo uma dance battle. Formou-se uma roda, Pongo dançava com quem estava disposto a isso, não havia regras e a energia era electrizante.

Havia outros provocadores pelo festival e Herlander foi um exemplo disso. No Palco Choque entrou de forma desconcertante, com um urso de peluche, olhar cabisbaixo e pés a arrastar. Mas o que se seguiu foi um autêntico furacão. A força do músico estava ali toda, sem constragimentos. “Gisela” é o tema que se destaca do seu curto percurso até agora e foi com ele que fechou o seu concerto. Herlander desconstroi, faz uma música sem medos e arrisca sempre que pode. Um talento para acompanhar com mais atenção.

A noite continuou com o Plutónio, que trouxe o hip-hop da linha Cascais. O artista já passou por várias provas de fogo, como encher um Coliseu. Durante a sua atuação menciona a sua agência, a Bridgetown e chama um dos seus mentores a palco, Richie Campbell. Todos estes concertos estão rodeados por momentos especiais, regressos e colaborações, que pautaram de certa maneira o ambiente do Iminente.

A música negra em força

No segundo e no terceiro dia chegaram mais pessoas, houve mais filas e mais confusão. O festival estava dimensionado para um certo número. A abertura e relaxamento das regras fez com que houvesse mais bilhetes, o que levou a aumento de fluxo um pouco por todo o recinto. Perdeu-se mais tempo para jantar, na casa de banho ou ir a buscar cerveja. O público foi o único que perdeu com isto. O Iminente sempre mostrou aprender com os erros. Acredito que a culpa não tenha sido totalmente da produção do evento, pois era difícil prever como seriam as condições para avançar com o festival. Houve um risco em tudo isto, mas o risco compensou.

Contudo a boa música continuou. O dia 8, abriu com a bela guitarra de Toty Sa’Med, um jovem talento angolano. Kalaf Eplanga co-produziu o seu EP em 2016, “Ingombota”, que mergulha no cancioneiro angolano e dá-lhe outras roupagens. A simplicidade na música Toty embala-nos para um fim de tarde quente e é uma boa introdução para outras sonoridades. Podemos afirmar que esta edição do Iminente ficou marcada pela música negra nos mais variados géneros.

O Julinho KSD e o Dino Santiago são dois filhos dessa herança cultural vinda dos PALOP e muito presente em Portugal. O próprio Dino afirmou durante a sua atuação que este é o único sitio do mundo onde as pessoas estão dispostas a ouvir música numa língua tão diferente da sua, neste caso ele referia-se ao crioulo. É uma afirmação ousada, mas com um quê de verdade. O facto é que em Portugal tanto ouvimos musica nacional nos diferentes dialectos, como música em inglês, espanhola ou vinda de países como o Brasil. A diversidade dos estilos de música que o público consome torna-nos de certa maneira especiais e dá-nos uma certa riqueza.

Há novos talentos que continuam a  surgir, umas das grandes surpresas ficou guardada para o terceiro dia, sábado dia 9. Nenny subia ao palco pela primeira vez. Uma estreia absoluta. Esta jovem de apenas 18 anos enfrentou um grande plúblico com uma naturalidade fora do comum. O verde florescente com que vinha vestida mostrava a vitalidade de uma adolescente que pode vir a crescer ainda mais. Este seria sempre um concerto especial para Nenny, os êxitos mais recentes como “Tequila”, “Sushi” e “Bússola” passaram todos por lá, mas houve outras presenças de peso. A mãe e a avó da jovem cantora apareceram em palco e gerou-se uma comoção surpreendente. Estavam ali os seus pilares e exemplos de vida. Uma bonita homenagem.

Novos sons e novos festivais

Mais do que um festival, o Imenente também é um espaço de diálogo entre as diferentes tribos urbanas, estilos musicais e formas de estar. É bom ter uma experiência onde se ouve tão facilmente fado como hip-hop. Este contraste faz com que os artistas procurem reinventar-se.

Os novos sons aparecem com a naturalidade pela voz de artistas mais jovens como Pedro Mafama ou por outros com mais maturidade, como é o caso de Ana Moura. A língua portuguesa vai beber a muitas culturas, por isso não é de estranhar ouvir os arabescos em Mafama ou dialectos africanos na voz da Ana Moura. Também tivemos a oportunidade de conhecer diferentes geografias. David Bruno mostrou-nos a realidade de um subúrbio tão rico como Gaia através do seu olhar pertinente e por vezes surrealista. Também os Fogo Fogo conseguem transportar-nos para zonas mais exóticas, como é o caso de Cabo Verde e o seu frenético funaná.

O Iminente mostrou que é possível estarmos mais juntos, uma grande conquista para quem gosta de dançar. Mas será que todos os festivais vão voltar de forma igual? Não me parece. Talvez os de maior dimensão consigam criar formas de contornar certos constrangimentos que possam vir a ter em 2022, mas os de pequena e média dimensão poderão surgir com novas ideias. Há muito onde se pode explorar e acredito que possam encontrar modelos e curadorias mais inovadores para dar a conhecer música noutros formatos.

Neste festival lisboeta tivemos quatro dias de bons concertos e com uma identidade muito própria. Esperamos que possam surgir outros eventos como este um pouco por todo o país, onde a arte e a música possam interligar-se. Num fundo os festivais também serve para conhecer-nos um pouco melhor a nós próprios e das comunidades à nossa volta.

Texto e fotografias: Rodrigo Toledo