Aviso aos mais incautos: este artigo está cheio de spoilers. Assistimos ontem ao primeiro de dois concertos da digressão WE, dos Arcade Fire, no Campo Pequeno – se têm bilhete para o segundo espectáculo, que acontecerá esta noite, sexta-feira, 23, podem não querer avançar. Se, ainda assim, cederem à tentação, acreditamos que nem tudo está perdido – nós não nos importávamos de repetir a dose, mesmo que o alinhamento não alterasse nem uma vírgula.
Os concertos dos muito acarinhados canadianos do indie são sempre experiências avassaladoras. As roupas e coreografias cuidadas, as harmoniosas trocas de instrumentos e de posições em palco, as músicas entoadas em coro, pelo público, parecendo atingir o estatuto de hinos. Os Arcade Fire não são banda a ver antes de falecer, são banda a ver sempre até desaparecer. Os quase 120 minutos de concerto tiveram como últimas palavras de Win “até amanhã” – nós temos pena de não responder à chamada, hoje.

As portas abriram pelas 19h, mas foi pelas 20h que os Boukman Eksperyans subiram a palco, assegurando a primeira parte do concerto. Esta banda do Haiti teve alguma relevância nos anos 90, com o seu álbum de estreia Voudou Adjae, e funde, até hoje, ritmos haitianos e caribenhos com rock e reggae. Preencheram cerca de 45 minutos com energéticas danças tribais e fizeram tremer as paredes do Campo Pequeno com o volume elevado. Enquanto acto isolado, a verdade é que teríamos apreciado mais a singela presença de Feist (que abdicou recentemente da sua participação na digressão), mas os Boukman agarraram a oportunidade com tudo e, mais do que o seu concerto na primeira parte, acabaram por caracterizar uma série de músicas do main act – já lá iremos.
Assim que os haitianos abandonaram o palco, surgiu um DJ munido de maracas no palco secundário, que existia a meio da plateia e que incluía também um piano. Deu-nos música durante cerca de 15 minutos e dançou energeticamente pelo meio da multidão, evitando que os ânimos serenassem.
Pouco passava das 21h30 quando os Arcade Fire iniciaram o concerto, atravessando a plateia para chegarem ao palco principal. Este incluía um enorme semi-círculo com dotes de vídeo, que foi servindo diferentes motes ao longo da noite. Numa primeira instância, simulou a abertura de uma nave espacial, à medida que a banda se dirigia aos seus instrumentos, para logo se transformar no olho que carateriza a capa de WE. A música de abertura foi, pois, “Age of Anxiety I”, música na qual encontramos referências a “Running up that hill”, da Kate Bush – ainda não tirámos a limpo se estamos sozinhos neste sentimento.

Os ânimos mornos aqueceram subitamente com a música seguinte: “Ready to start” (The Suburbs, 2010). Com um total de oito músicos em palco, que se manteriam ao longo da grande maioria do concerto, a versão que esta música assumiu, nesta noite, pareceu-nos mais rock do que nunca, com as guitarras especialmente presentes. A tentação do público de começar a entoar o refrão antes do tempo, tais são as ganas de gritar now I am ready to start, essa, mantém-se.
Seguiram-se mais um par de músicas do mesmo álbum: “The Suburbs” e “The Suburbs (continued)”, com Win Butler ao piano e Régine Chassagne na bateria, com o tão característico violino de Sarah Neufeld bem presente. Sometimes I can’t believe it / I’m moving past the feeling, again assumiu-se em coro absoluto do público que assistia ao concerto.
“It’s Never Over (Hey Orpheus)” (Reflektor, 2013) apresentou Régine em cima do piano que habitava o palco secundário. Foi um bonito espectáculo cénico, em que o casal Régine e Win, frente a frente mas com o público pelo meio, repetiam, à vez, it’s never over, como se de juras de amor se tratassem. A música terminaria com a caminhada de Win até Régine, em mais um banho de público entre palcos.
“My Body Is A Cage” (Neon Bible, 2007) focou todas as atenções no palco secundário. Desta feita era Win em cima do piano, com Régine a seus pés, tocando órgão electrónico. O refrão da música soou mais ainda a raiva do que nos lembrávamos.

A enorme bola de espelhos que pendia do tecto do Campo Pequeno, desde o início da noite, assumiu o seu papel no acto que se seguiu. Luzes emergiam desta, caracterizando toda a sala com o seu reflexo e mostrando que estávamos de regresso ao álbum Reflektor: com “Afterlife” e “Reflektor”. O duo Win-Régine estava de volta ao palco principal. Win já se tinha desfeito do colete vermelho e exibia uma t-shirt preta com WE, as mesmas iniciais que existiam no bloco que Win insistia em subir enquanto gritava can WE work it out / scream and shout. Já em “Reflektor”. Régine assumiu a liderança de gabardine verde fluorescente, cantando If this is heaven / I don’t know what it’s for / If I can’t find you there / I don’t care. O jogo de luzes do palco foi especialmente bem sucedido nesta música, entre a bola de espelhos e os feixes de luz na periferia do palco, que celebravam certas palavras do refrão.
“Age of Anxiety II (Rabbit Hole)” (WE) foi uma grande festa em palco e transbordou para o público, assumindo contornos de música que voltaremos a ouvir. Por esta altura já a banda estava totalmente rendida à dedicação do público presente, e Win não só incentivava coros como instruía “baixo” – mas nós só percebemos que nos devíamos baixar quando usou o inglês, “low”. Voltaríamos rapidamente a subir.
Desta para a próxima assistimos no semi-círculo do palco a uma espécie de viagem pelo universo seguida de tempestade, que nos levou até “The Lightning I” e “The Lightning II”, mantendo o mote no álbum mais recente da banda e na digressão à qual este concerto pertencia.
A passagem para “Rebellion (Lies)” (Funeral, 2004) foi uma viagem relâmpago até ao longa duração de estreia dos Arcade Fire. Com parte considerável do público com a letra inteira na ponta da língua, o público assumiu a função de backup vocals de sobremaneira. O entusiasmo era tal que nos pareceu difícil à banda passar à música seguinte.
Viajámos mais ainda até ao passado com “Headlights Look Like Diamonds” (Arcade Fire, EP, 2003) e rejubilámos com “No Cars Go” (Neon Bible). Com alguma emoção, Win indicou-nos que estas foram a primeira e terceira músicas que escreveu em conjunto com Régine, que desta feita tocou acordeão, enquanto Sarah fazia magia no violino. Que celebração e que bela surpresa nos reservou a banda, já que esta música não tem pautado os alinhamentos da digressão.
“Unconditional I (Lookout Kid)” (WE) resultou muito bem em concerto e contou com os bonecos insufláveis, que caracterizam o seu vídeo, em modo gigante – e que curiosamente nos lembravam alguns movimentos vincados de dança que Régine assume. A bonita mensagem But if you’ve lost it, don’t feel bad / ‘Cause it’s alright to be sad, seguida do peganhento do-do-do-do-do-do-do-do, ainda está connosco. Bem que a banda avisou no Twitter, sobre o disco, “Give it a summer to live with. It’s music that reveals itself over time.”
Nova viagem ao passado com “Haïti” (Funeral), cantada em francês por Régine, e que assumiu uma vertente tribal mais carregada. Não foi de todo um acaso, dado que esta foi a oportunidade ideal para trazer a palco os Boukman Eksperyansy, tanto músicos como dançarinos, transformando a música numa espécie de prece vudu.
Seguiu-se outra música que dá merecido destaque a Régine, e que a trouxe de volta ao palco secundário: “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)” (Suburbs). Não, não nos cansamos da teatralidade da vocalista enquanto nos diz I need the darkness / someone please cut the lights – e estas apagaram-se, por segundos, sempre que o pedido do refrão surgiu.

“Everything Now” trouxe mais uma calorosa participação do público e encerrou a primeira parte do concerto dos Arcade Fire. O público pedia mais, e não sossegou até que a banda regressou a palco, recebendo-a com um mar de luzes.
Regressaríamos ainda a WE, com “End of the Empire I-III”, numa versão que começou acústica, apenas com Win à guitarra, e cresceu com a restante banda. Já “End of the Empire IV (Sagittarius A*)” assumiu para nós contornos de “Exit Music (For a Film)”, dos Radiohead, à medida que a voz de Win derretia com And the space where they say / Heaven is gone away, e a banda completava com o mote unsubscribe.
Para o final estava reservada uma carta retirada do último concerto da banda no Campo Pequeno: final apoteótico com “Wake Up” (Funeral); não nos importamos, esta música resulta sempre para nos mandar para casa de sorriso nos lábios, ainda a entoar o oooh-oooh enquanto abandonamos. Os Arcade Fire dirigiram-se em procissão para a saída, com Richard Parry ainda energicamente a contribuir na percussão, já com a música despida de letra relevante mas preenchida com o coro do público.
Texto: Andreia Duarte
Fotografia: Everything Is New | João Padinha